sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O menino que viu a luz entrar



Uma de minhas primeiras lembranças da História está vinculada a TV, música, rádio e ao contexto do Regime Militar, que aos 10, 11 anos obviamente não tinha consciência alguma.
Era 1982. Morre Elis Regina. Não fazia ideia de quem era, pois em minha casa  tínhamos muito pouco acesso ou estimulo a consumir cultura, música ou informação em geral. Sou de uma família operária (adoro o termo, Marx explica, talvez.) e meus pais trabalhavam e viviam, viviam e trabalhavam para que nós (eu e minhas irmãs) tivéssemos o básico.
Voltando a Elis: a notícia inundou todas as mídias, em especial as que tínhamos acesso: TV e rádio. E foi um tal de tocarem sem parar diversas músicas, entre elas uma em especial: “O bêbado e o equilibrista”. Começaram a desvendar a letra, que pra mim eram fragmentos de um mistério intrigante: “rabo de foguete, chora Clarisses, volta do irmão do Henfil” (sim, já sabia quem era: um sujeito que fazia algumas coisas engraçadas no TV mulher, programa passava pela manhã na tv).
Descobri que aquela letra tinha uma mensagem cifrada. Fiquei entusiasmado. Mas ainda não sabia o significado. Do que estavam falando?
Durante o velório (transmitido na tv) veio outra dica: houve um debate acalorado sobre permitir (ou proibir) o corpo da cantora ser velado com uma camiseta que lembrava (ou era) a bandeira estilizada do país. Lembro que fiquei intrigado: “quem” não deixava? qual seria o problema? o que havia de errado com o Brasil? qual era o medo?
Ao longo da década de 80 mais informações começaram a chegar, de forma solta, estilhaçada, esparsa, que fui maturando em minha cabeça ao longo da adolescência:
Gilberto Gil lamentava sobre os “amigos presos, amigos sumindo assim, pra nunca mais”. E tempos depois começaram a chegar pessoas muito esperadas no aeroporto do RJ. Gabeira voltara (quem era ele? Voltara donde? Porque partira?). Comícios das Diretas. Figueiredo com sua farda, chicote e cavalos. Bombas no Riocentro. A inflação era um monstro divulgado em forma de números todos os dias na TV. E Tancredo, um velhinho com uma cara boa capturava a esperança de milhões. E vem mais música: o Rock’n’Rio.
Ei, calma lá: ali naquele palco e também na plateia, assisti (pela tv) a bandeira nacional novamente e por diversas vezes sendo exibida, empunhada, abraçada. Não se falava mais em proibir. Em 1985 o Brasil já não era mais proibido. De se ver, se exibir, se vestir, enfim, de se abraçar.
Esses fragmentos de memória foram sendo encaixados quando cheguei ao ensino médio. A professora de Geografia, Edwiges, começou a falar de uns tempos atrás, “onde não se podia falar e nem mesmo ler” sobre alguns assuntos. Comentou de pessoas que “sumiram”. Perguntei em casa. Minha mãe falou sobre “gente do sindicato” que também “sumiram” e avisou que “não era bom falar disso”.
Depois veio o Leal, professor de Literatura (e, dá-lhe mais música!): agora já sabia o significado de “Cálice” de Chico Buarque, das letras do Vandré, entre outros.
Depois veio a professora de Filosofia. Falava de liberdade, trabalho, dignidade e de um tal de Marx que pensara sobre tudo isso. E tinha outros que pensavam sobre outras coisas: Sartre, Platão, Foucault (sim, todos esses caras numa escola pública do ensino médio. Obrigado Virgínia!)
Enfim, chegou Nazaré, a professora de História, que com o olhar abrangente e contextualizador - que somente a História oferece - nos vez entender que havíamos acabado de sair de um período negro da história da nação. Éramos a geração que viu a abertura chegar, mas não entendíamos onde estávamos antes dela e nem o que seria depois. Havia apenas as cores e cheiro da esperança no ar.
Nesse momento descobri uma das possibilidades da História: de reconhecimento do presente. A História não era apenas aquele passeio assustador ou nostálgico pelas catacumbas da humanidade! Ia além: podia esclarecer, explicar, aplacar as dúvidas do presente. Estava viva. Era a “grande esclarecedora”, aquela que entende dos fios, mas também da trama como um todo. Claro, fiquei seduzido por tal “ciência”.
Tudo isso ocorreu durante o ensino médio em uma escola pública no subúrbio do estado do Rio de Janeiro. A mesma escola que apesar dos problemas e dificuldades – reais ou inventadas – e seu grupo de professores dedicados me preparou, nos mais diversos sentidos.
Preparou-me inclusive para romper com um certo determinismo “de classe social”, isso é, me deu base para passar num vestibular de uma Universidade Pública. Coisa que em geral, apenas os alunos de escolas “fortes” particulares tinham acesso.
Eram outros tempos, onde a escola era muito mais do que produtora de dados numéricos para exposição nacional e internacional visando se adequar aos Pisa’s da vida em troca de valiosos prestígios-empréstimos-financiamentos seja lá do que for. Que seja perdoado meu suspiro nostálgico: tínhamos qualidade e não sabíamos!
Mas voltando ao fim da história (ou novo inicio): vocês acham que tive dúvidas na hora do vestibular?
Não, já havia feito a escolha anos antes. É História, sem dúvida alguma.

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